Por Raquel Hadler
Ouve-se muito que a capacidade de adaptação foi uma das competências mais importantes nos últimos dois anos. O ano de 2020 trouxe um cenário inesperado com a Covid-19 que, além de ter infectado milhões de pessoas e deixado um sentimento amargo em muitos lares pelas vidas que levou, acelerou muitos processos que afetam nossas práticas cotidianas.
Um exemplo foi a adoção do trabalho remoto, que inicialmente representou uma adaptação forçada para muitas empresas e professionais. A partir do que foi vivenciado no decorrer dos dois anos de pandemia, as vantagens do trabalho remoto ficaram em evidência em um contexto cada vez mais interconectado, desconstruindo antigas resistências. Agora, em 2022, com a possibilidade de volta das atividades presenciais em muitas empresas, observamos o debate sobre o melhor modelo de trabalho que deve ser adotado, considerando as facilidades que o remoto proporcionou.
Outro exemplo de processos acelerados pela pandemia foi a intensificação da digitalização da vida – de acordo com pesquisa realizada pela CETIC, a pandemia intensificou o uso de tecnologias digitais no Brasil. Neste contexto, observamos a aceleração na adoção de novas tecnologias e a intensificação do uso das já existentes como parte do processo de adaptação dos hábitos cotidianos a uma nova realidade que se impunha.
Diante desse cenário, a questão que se coloca para o debate é o quanto estávamos preparados para essas adaptações. Com o trabalho remoto poupamos tempo de deslocamento entre casa e trabalho, o que não necessariamente repercutiu em um aumento da qualidade de vida, pois em muitos casos representou um aumento da jornada de trabalho e da incidência de burnout, ansiedade, depressão, etc. Já a intensificação do uso de tecnologias digitais evidenciou desigualdades sociais pelas diferenças no acesso à tecnologia.
Assim, diante das experiências vivenciadas nos últimos dois anos e da expectativa de uma nova fase em 2022, como encontrar um equilíbrio e construir uma vida saudável no ambiente corporativo? Esta é uma pergunta que é posta como um grande desafio para gestores, desafio realçado pelo fato da preocupação com a qualidade de vida ser uma tendência sociocultural.
A busca por ter uma vida saudável foi impulsionada por discussões que circularam pelas diversas mídias no decorrer da pandemia, mas já era uma tendência indicada por diversos estudos de mercado anteriores a 2020. Observa-se, por exemplo, uma preocupação crescente que ultrapassa a contagem de calorias e o enrijecimento dos músculos. Entram em pauta preocupações que estimulam as pessoas a olharem para uma esfera mais ampla, que envolve questões em torno da saúde mental, emocional e até espiritual ou energética, dependendo da abordagem.
Consequentemente, não é por acaso que observamos a propagação de práticas que estimulam o autocuidado, autoconhecimento, a relação de influência entre corpo e mente, etc. A adesão a essas práticas são escolhas, as quais não deixam de comunicar formas de atribuição de sentido ao mundo. O processo de atribuição de sentidos nada mais é do que o processo de construção da ética, como articula a filósofa Marilena Chauí.
Aristóteles foi quem desenvolveu o primeiro tratado de ética dentro da filosofia ocidental, propondo um sentido para a ética vinculado às experiências cotidianas dos sujeitos e que se mantém até hoje. De acordo com essa visão, podemos entender que a ética busca estabelecer as possibilidades de agir para se alcançar uma realização pessoal vinculada ao bem comum. Assim, a partir de práticas cotidianas, torna-se possível construir uma vida boa, que também podemos chamar de “felicidade” na perspectiva aristotélica, sendo esta o objetivo final de nossas ações.
Desta forma, como construir uma “vida boa”, ou seja, uma vida que “valha a pena”, dentro do ambiente corporativo? Este tem sido um dos grandes desafios para quem trabalha com o employer branding. Sem a pretensão de apresentar uma resposta, até por não acreditar que exista um único caminho, ressalto que para seguirmos em frente com essa reflexão não podemos nos furtar ao fato de que as possibilidades de ação são condicionadas pelo contexto no qual estamos inseridos. Assim, devemos perguntar: quais são as possibilidades de escolhas no ambiente de trabalho? Quais atribuições de sentido são permitidas?
Ao relacionarmos essas perguntas com a capacidade de adaptação destacada no início do artigo, é importante lembrarmos que fomos condicionados pelo contexto sanitário e não houveram possibilidades de escolha que não repercutissem na adaptação em algum aspecto da vida. Na grande maioria dos casos, essa não possibilidade de escolha foi dosada pela compreensão em relação à pandemia, mas não deixou de gerar consequências.
Portanto, para que uma empresa possa proporcionar um ambiente que o colaborador sinta que vale a pena ser vivido, ela precisa entender e aplicar o que faz sentido para ele. Isso não significa que os colaboradores irão ditar as regras, mas indica a importância das empresas incorporarem em suas estratégias formas de promover possibilidades de escolhas a partir daquilo que elas conseguem oferecer. Para isso, a cultura institucional deve ser construída a partir do estímulo a práticas colaborativas e da promoção de discursos que realmente dialoguem com os colaboradores. A execução não é simples nem fácil, mas não deixa de ser um exercício ético, que contribui para a realização pessoal de cada colaborador e para o “bem comum” dentro de uma corporação.
Autora: Raquel Hadler – Professora e Coordenadora de Educação Continuada da Universidade Presbiteriana Mackenzie