Júlio Figueiredo ‒ ESPM
Sabemos que o engajamento nos treinamentos corporativos muitas vezes conta uma história conhecida: muita oferta e pouco impacto. A novidade é que, longe do hype, a Inteligência Artificial (IA) já ajuda a transformar esse quadro ao recomendar trilhas sob medida, ajustar o ritmo de aprendizagem e oferecer feedback contínuo aos programas.
Quando bem usada, a IA identifica lacunas de competências, sugere trajetos formativos específicos e encurta o caminho até a proficiência. Isso não é promessa, está documentado na literatura sobre IA aplicada ao desenvolvimento de colaboradores, com evidências de ganhos de personalização, previsão de necessidades futuras e automação de tarefas administrativas.
Nos treinamentos, o uso de IA vai além de ter o conteúdo certo na hora certa. Sistemas de mentoria virtual enriquecem a experiência de aprendizagem, e o acompanhamento em tempo real sinaliza progresso e necessidades de reforço. Tudo isso pode ser alinhado às metas do negócio e às trajetórias individuais de carreira, resultando em maior retenção de conhecimento e mais engajamento.
Mas se a tecnologia está disponível e oferece vantagens, por que a adoção ainda emperra? Porque os entraves são menos técnicos e mais organizacionais. Estudos apontam três grandes obstáculos à adoção da IA no RH: culturas organizacionais resistentes à mudança, infraestrutura tecnológica fragmentada e ausência de padrões práticos para aplicação ética da IA em processos de gestão de pessoas.
Se os principais obstáculos estão na cultura, na infraestrutura e na ausência de práticas éticas aplicáveis, a transformação precisa começar exatamente por aí. No campo cultural, o primeiro passo é criar um ambiente de aprendizado aberto à experimentação, em que pilotos com metas claras testem o valor da IA sem alimentar resistência ou medo. No campo técnico, é essencial formar uma base de dados e tecnologia que permita a personalização, acompanhada da capacitação do time de RH para operar, interpretar e ajustar modelos. No campo ético, a prioridade é instituir governança clara: políticas que definam critérios de explicabilidade, revisão humana em decisões sensíveis e mecanismos de auditoria do impacto da IA na eficiência, na justiça e na inclusão. Sem esse tripé, a IA em RH corre o risco de virar apenas mais uma prova de conceito que nunca transforma a prática.
Nesse contexto, o papel do RH muda para melhor. Com a IA cuidando do back office do treinamento, acompanhamento de progresso, avaliações e recomendações. O esforço da área se desloca para o desenho de experiências, a curadoria de conteúdos e conversas de qualidade sobre carreira com gestores e colaboradores.
Há ainda um ponto de política interna que não pode ser ignorado: ela mexe com poder. Ao tornar visíveis lacunas de competências e rotas de mobilidade por meio de sistemas de IA, informações antes tácitas passam a ser explicitadas, o que pode desafiar grupos internos, agendas e narrativas. A literatura aponta que cultura, liderança e infraestrutura determinam o sucesso da adoção de IA em ambientes de treinamento.
Hoje, a IA personaliza, prevê e mede. O RH garante ética, contexto e sentido. Quando cada lado cumpre o seu papel, o resultado é um ecossistema de desenvolvimento menos genérico e mais transformador, para as pessoas e para o negócio.
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Júlio Figueiredo é Diretor Acadêmico de Educação Executiva da ESPM e Professor Titular do Programa de Mestrado e Doutorado em Administração da ESPM. É Doutor em Física Nuclear pela USP, e especializado em Gestão de Negócios pelo ITA e pela ESPM. Seus trabalhos e pesquisas atuais tratam do ambiente cultural de inovação e dos processos de adoção e difusão de inovações pelos mercados e empresas.